quarta-feira, 3 de junho de 2009

Da necessidade do fim do nacional pragmatismo

Há em Portugal uma tendência para o concreto. Louvam-se as propostas concretas, as medidas concretas, as soluções para os problemas reais e é acertado que assim suceda. A questão é que as medidas concretas só resolvem os problemas reais se forem boas medidas. E para serem boas medidas não podem, ou não devem ser desgarradas, mas fazer parte de um plano para o País, de uma ideia do que se quer para Portugal. Quando assim não sucede, medidas ditas boas (também há, claro está, aquelas que são más, muito más, ou péssimas) chocam entre si na sua incoerência vazia de conteúdo. Um óptimo exemplo é a amálgama legislativa em que vivemos.

Aquela tendência produz um tipo ideológico - "os pragmáticos" - que não perdoam aos "outros" - os "dogmáticos" ou "doutrinários", como se ter dogmas, ou doutrina, impedisse a acção.

Daqui decorrem vários problemas: os pragmáticos, na sua febre do concreto, afastam-se do povo, que tende a deixar de votar. As opções esbatem-se, porque sem reflectir sobre o concreto, a realidade é mais ou menos na mesma, ou mesmo se dizendo das "propostas" apresentadas aos cidadãos. O poder autárquico, com excepção de um, ou outro bom exemplo, é disto sintomático.

Os pragmáticos são, por isso, os pais da abstenção.

Os pragmáticos são os paladinos do bloco central, são os que criticam a OTA, mas fizeram o Centro Cultural de Belém, sendo que os que queriam a OTA haviam atacado o CCB, são os que acabaram com a exigência na escola, são os que eliminaram a autoridade do professor e a substituiram pelo poder das direcções regionais, são os que apostam tudo em mais e mais autoestradas, que não nos conduzem a lado algum, mas que levam (alguns) pragmáticos ao poder.

Os pragmáticos não deixam os créditos por mãos alheias. Cuidam os partidos com carinho, como estruturas isoladas do mundo, em que tudo é combinado sem intervenção dos eleitores, mas apenas dos "militantes". É um mundo fechado, em que se premeia a habilidade para estar no partido mais do que na vida real, em que se valoriza a consistência, o caminho, a pedalada - tudo reportado ao partido. Os pragmáticos temem as eleições uninominais, que dizem gerar instabilidade e caciques. Como se as eleições que temos não gerassem caciques e não obtivessem mais do que uma instabilidade murcha, feita de um progresso raquítico.

Os pragmáticos gostam de atacar a Justiça, por tantas razões, que seria fastidioso sequer referir 10. No essencial, acham os magistrados pouco "pragmáticos", até porque andam em busca de uma coisa um tanto "abstracta" (o conceito-demónio dos pragmáticos) que é a Justiça.

Os pragmáticos detestam demissões, mesmo quando há escândalos. O povo acaba por esquecer e se nas eleições seguintes votar 40% em vez de 60%, os eleitos continuam a ser eleitos. Mais pragmático do que isto não pode haver. É que os pragmáticos, se são pais da abstenção, são irmãos do curto prazo.

Claro que há doutrinários neste País, em especial nas franjas da política. Muito à direita. Muito à esquerda. Tudo podem dizer e dizem muitas coisas. Têm um projecto, ao contrário dos pragmáticos. É, quase sempre, um mau projecto, cheio de erros históricos, incompreensão da natureza humana e demagogias sem fim. Do lado da direita não conseguem (e ainda bem) representação parlamentar, à esquerda sim (respeite-se).

Claro que nos partidos do centro democrático (esquerda, ou direita) não há só pragmáticos, mas são uma minoria, ou quando muito uma maioria silienciosa.

A seguir à revolução dos cravos, houve uma geração de doutrinários de centro e de direita. Que eram muito doutrinários e de uma direita moderada. Representavam a tradição liberal, conservadora e democrata-cristã que marca o essencial do êxito britânico, ou norte-americano, que recuperou a Alemanha das cinzas, que ajudou a Espanha a fazer a transição para a democracia - sempre com doutrina e vários dogmas.

Essa geração desapareceu e raramente existiu na historia portuguesa, sempre muito marcada por um confronto entre extremos. Veja-se o nosso século XX, em que transitamos de um regime carbonário directamente para um autoritário, sem qualquer experiência minimente democrática entre 1910 e 1974.

Sem doutrinários liberais e conservadores Portugal não pode sair de onde está. Não interessa qualificar onde está o País. Qualquer patriota sabe que não é um sítio bom. Porque os pragmáticos sabem o que querem fazer (e vão fazê-lo), mas não sabem para onde vão.

Significa isto que só os doutrinários liberais e conservadores fazem falta a Portugal. Claro que não. Sucede que uns geram outros, designadamente doutrinários de centro-esquerda, que os há, mas em número não bastante para encher dois ou três taxis.

Queremos mesmo 200 deputados não eleitos pelo povo? Que sistema eleitoral devemos ter? Deve ou não haver regionalização? Queremos promover a natalidade, ou combatê-la? Queremos uma educação rigorosa, ou um recreio onde se formem uns quantos pragmáticos? Queremos apostar nas empresas, ou fazer delas o bode expiatório? A culpa da crise e do mercado, ou daqueles que pagos pelos nossos impostos o não sabem regular? Queremos uma cultura da vida, ou uma cultura da morte? O rendimento mínimo garantido traduz o nosso conceito de Justiça e de progresso, a mensagem que queremos transmitir aos nossos filhos? Estamos, ou não dispostos a perseguir a corrupção como o grande mal nacional? Queremos - independentemente das convicções religiosas que se tenha - respeitar a Igreja Católica (e as demais), ou encostá-la a um canto na lógica jacobina? A família deve ser defendida, ou é um conceito reaccionário? Queremos ajudar todos por igual, ou só quem precisa e apostar quase tudo em ajudar muito quem precisa muito? É inadmissível que quem tenha um salário de € 500 (ou nenhum) não pague nos hospitais e quem ganhe € 10.000 pague um pouco (ainda que bem menos do que no privado)?
Ainda estamos precisados de mais autoestradas que ameaçam tornar-se na nossa alcatifa?

Estas são algumas das questões sobre as quais doutrinalmente se deve reflectir para poder actuar sobre o concreto de modo esclarecido e estratégico. E já agora, que se possa fazer reflexão doutrinal sem se cair nas franjas.

Uma certa esquerda (extremista, ou não necessariamente) aponta esta crise como o falhanço do mercado. É uma mentira despudorada. Falhanço, falhanço foi o do marxismo no século XX. Esta crise mostra, quando muito - e já é muito - o falhanço dos pragmáticos. De todos os pragmáticos. Os que andavam pelo mercado e os que supostamente os "regulavam".

2 comentários:

  1. Os Ingleses têm um jogo de pub chamado "Drink while you think", o qual, em última análise, visa demonstrar que à medida que uma potente bebedeira se instala vai diminuíndo a capacidade para elaborar quaisquer pensamentos. Como é fácil de ver, a depressão económica em que vive o mundo é a "bebedeira perfeita", o cenário ideal para se instalar o pragmatismo, o "o que é necessário, agora, é fazer". O jogo, no entanto, revela outra coisa: a única forma de evitar a espiral descendente (o verdadeiro ciclo vicioso que se desenrola) é ater-se ao "pensamento", é parar e definir estratégias e rumo.

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  2. Resta saber, é claro, se o objectivo do grupo que joga é beneficiar da bebedeira (e, oh, como se pode beneficiar) ou produzir pensamentos válidos... Os pragmáticos, parecendo que não, têm objectivos bem terrenos...

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